quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

NA DISTÂNCIA EM QUE EU TE ENCONTRE


Postado de 11 de Fevereiro de 2011 a 20 de Dezembro de 2012.

Em versão impressa (livro) e digital (ebook) 
no site da Editora Vira Letra!

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SINOPSE
Completamente diferentes em vivências, gostos, estilos, culturas, personalidades...
Maurícia e Liv têm algo em comum: uma solidão refratária.
Decepções e sofrimentos gravaram nas duas marcas profundas.
Como voltar a reabrir corpos, corações, almas?
Como unir duas vidas, sem abrir mão de uma? 
Como extinguir as infinitas distâncias que as separam?

TRECHO DA APRESENTAÇÃO DO LIVRO POR KARINA DIAS
Ler Diedra Roiz é mergulhar na intensidade de sensações e sentimentos, desses tão reais que nos fazem ficar dias com a narrativa impregnada na cabeça. 
Além das emoções que sua escrita nos proporciona, podemos ir mais além na descrição. Diedra nos afeta. Refiro-me ao afeto no sentido de nos mover, de transformar a forma como vemos e sentimos o mundo ao nosso redor, então, refiro-me principalmente a potência que sua escrita tem para desencadear na leitora (o) o pensamento de igualdade, tão caro às lutas por visibilidade lésbica, homossexual, humana. 
Neste novo livro - sucesso garantido -, a autora nos brinda com um encontro de personagens tão reais e humanas que poderia ser qualquer uma de nós. Na verdade, talvez Maurícia e Liv sejam muitas de nós. 
Tem magia e brilhantismo no ponto certo, além de uma pitada excitante que faz a gente se lembrar de como é bom apaixonar-se, ter a liberdade de lutar contra qualquer conflito que a vida nos submeta, sem que o conflito seja a nossa sexualidade, pois esta é natural e não deve jamais ser vista como um entrave para sermos felizes.
A delicadeza na construção da relação das personagens, a poesia da narrativa, marca registrada da autora que brinca com as palavras, nos permite saborear cada parágrafo. NA DISTÂNCIA EM QUE EU TE ENCONTRE traz duas mulheres de personalidades e vidas distintas, mas com um fio condutor deveras semelhante: mulheres decididas, que carregam cicatrizes de outros relacionamentos e não querem se entregar a amores efêmeros.
-Karina Dias-

MÚSICAS QUE INSPIRARAM A HISTÓRIA:

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    OBS IMPORTANTE: 

    A história não está completa, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação. 

    terça-feira, 3 de janeiro de 2012

    CAPÍTULO UM



    Música alta, movimento enorme de pessoas rindo, falando e gesticulando numa velocidade que parecia forçadamente alegre e acelerada. 
    Realmente não era do que precisava.
    Desejou estar em casa assim que abriu a porta do carro.
    Óbvio que, antes mesmo de aceitar o convite de Miguel, já sabia perfeitamente o que a esperava. Recusaria, se o irmão e o cunhado não tivessem insistido até ser impossível não acompanhá-los. Única e exclusivamente por isso, Maurícia estava ali.
    Por outro lado, não pretendia atrapalhar a diversão deles, então... O plano era simples: ficaria um pouco e depois daria um jeitinho de se retirar.
    Não fez nem disse nada. Bastou um ínfimo instante pensativa, ainda sentada no banco de trás. Não precisava de mais. Com a mesma facilidade de quando eram crianças, o irmão gêmeo falou como se soubesse o que ela pensava:
    – Vamos lá, Mau... Nada de ir embora correndo, faz séculos que tu não sai. Três anos enfiada naquele buraco é muito tempo, tu tá virando um bicho do mato. Relaxa e aproveita, mana! Confia em mim: não existe lugar melhor pra se divertir do que numa festa do Fábio.
    A animação dele não a contagiou. Foi ainda preferindo poder estar deitada no conforto do quarto de hóspedes do irmão que Maurícia saiu do carro.
    Com a simpatia desinibida que lhe era peculiar, Leandro tentou ajudar:
    – Tá gatíssima, cunhada! Vai arrasar!
    A exclamação conseguiu arrancar um sorriso de Maurícia. Apesar de achar Leandro um pouco fútil, não tinha nada contra o cunhado, muito pelo contrário. Gostava do companheiro de Miguel. Meigo, doce, carinhoso.
    Uma graça. Na verdade, ele e o irmão pareciam feitos um para o outro.
    Tinham os mesmos gostos, objetivos e valores. Maurícia sabia perfeitamente que ali era ela que não se encaixava. Optara por uma vida muito diferente. Mais introspectiva, quase solitária. Há muito deixara de achar graça em contatos efêmeros que não lhe diziam nada. Ter 40 anos lhe conferia exatamente essa vantagem: saber muito bem o que queria, desejava e do que realmente gostava. Sem o menor sofrimento seguia o ditado: antes só do que mal acompanhada. Estava bem assim, mas, infelizmente, Miguel e Leandro pareciam não acreditar.
    Seria preciso um esforço muito grande e uma conversa profunda, complicada e filosófica demais para conseguir explicar. Não que Maurícia se achasse superior ou menosprezasse o irmão e o cunhado. Apenas os conhecia bem, o bastante para saber que nenhum dos dois estava disposto a esse tipo de diálogo. Acreditavam piamente que qualquer tipo de vida diferente da deles era triste e lamentável. Assim sendo, nada mais natural do que tentarem “salvá-la”.
    A grande ironia estava no fato do comportamento deles ser uma réplica exata do dos pais ao descobrirem que Miguel era homossexual. Outro assunto que, definitivamente, não cabia a Maurícia trazer à baila.
    Mais fácil sorrir e não deixar que percebessem que não tinha qualquer intenção além de escapar o mais rápido possível.
    Leandro sorriu de volta, empolgadíssimo ao estender o braço para ela e finalmente confessar o real motivo de insistir tanto para que ela tivesse vindo:
    – Vem comigo. Tenho uma amiga pra te apresentar. Ela é maravilhosa! Perfeita pra você, tenho certeza que rola.
    Já de braços dados com o cunhado, Maurícia olhou para Miguel, na esperança vã de poder escapar. Mas o irmão se fez de desentendido, ou melhor: mostrou estar indiscutivelmente do outro lado:
    – Pode confiar, maninha! O Leandro é o melhor casamenteiro da cidade!
    Maurícia poderia ter contestado, mas os dois pareciam tão absolutamente satisfeitos que não foi capaz. Entrou na festa devidamente escoltada, de braços dados com o irmão gêmeo e o belíssimo cunhado. Desejando estar sozinha debaixo das próprias cobertas, sem precisar passar pelo constrangimento de ser oferecida como uma vaca velha encalhada.


    Liv estava tão concentrada no trabalho que nem ouviu o celular tocar. Só percebeu quando o aparelho se deslocou, vibrando e saltitando como uma coisa viva por cima da mesa. Pousou os óculos ao lado do notebook antes de atender:
    – Alô?
    Soube quem era de imediato. Pela música e pela barulheira abafando a voz dele. Não precisaria nem dizer:
    – Liv? É o Fábio.
    Olhou para o relógio na tela apenas para ter certeza: havia perdido a hora completamente. Sem desligar o note nem fechar as fotos que tirara do apartamento que estava avaliando, caminhou em direção ao quarto e abriu o armário:
    – Oi, Fá... Eu já...
    Ele a interrompeu:
    – Posso saber por que diabos você ainda não tá aqui?
    Enquanto movia os cabides de um lado para o outro, tentou inutilmente se explicar:
    – Eu me enrolei com...
    Novamente, Fábio a cortou do outro lado:
    – Só me diz uma coisa: é rolo com buceta? Se for, tá mais do que desculpada.
    Liv não respondeu. Continuava tentando decidir o que vestir. Tarefa árdua. Desde a separação, todas as roupas que possuía estavam absolutamente largas. Acabou escolhendo um vestido preto, reto, básico. Não ficaria justo no corpo como antes, mas pelo menos não pareceria um espantalho. Depositou o vestido em cima da cama antes de se dirigir para o banheiro com a toalha no ombro. Só então protestou:
    – Você sabe muito bem que eu não...
    A resposta foi imediata:
    – Caralho! Ou melhor: trabalho, né? Ai, ai... Ninguém merece! Queridinha, hello! Hoje é véspera de feriado, tá rolando uma puta festa aqui em casa... Well... Se você não chegar em vinte minutos, juro que mando te internar! Uma workaholic celibatária? Afe! É um caso psiquiátrico super grave! Não posso permitir que a minha melhor amiga continue desse jeito, preciso arrumar alguém que te trate. Aliás... Aqui tem várias candidatas bastante qualificadas pra...
    Foi a vez de Liv cortá-lo:
    – Ai não, Fá... Por favor! Nada de me apresentar pra ninguém, tá? Eu ainda não...
    Fábio completou, recitando o texto que já sabia de cor:
    – Eu ainda não esqueci a Juliana, eu não quero conhecer outras mulheres, eu não estou pronta para um novo relacionamento, eu não quero só trepar por trepar, eu não blá blá blá blá blá...
    era a primeira vez que tinham aquele diálogo. Há longos seis meses – exatamente o mesmo tempo desde que Juliana e Liv haviam se separado –, Fábio tentava tirá-la do que ele intitulava de “depressão brega de sapa”. Para ele, um amor se curava com outro, e não havia quem o convencesse do contrário. Não compreendia – por mais que Liv tentasse explicar – que não era, nem de longe, assim tão fácil.
    Primeiro porque não fazia mais parte da filosofia de vida dela encarar outra pessoa como se fosse apenas um pedaço de carne – o que descartava completamente a ideia de sexo casual.
    Segundo porque continuava apaixonada por Juliana. Apesar da traição, de ser sido trocada por outra, da forma com que ela se aproveitara para levar quase tudo que tinham em comum no final e muitas outras coisinhas mais – que Liv preferia nem lembrar –, por mais que parecesse idiota e que se envergonhasse disso, Liv ainda a amava. Tinha plena consciência do quanto aquele sentimento era masoquista e só servia para torturá-la, mas... Não conseguia exterminá-lo.
    O terceiro era, na verdade, o motivo mais grave: a relação e o término com Juliana a haviam deixado em pedaços. Interiormente arruinada, como se dentro dela não houvesse sobrado nada além de escombros precariamente equilibrados, que ao menor movimento poderiam desabar. Envolver-se com outra pessoa era algo que sequer cogitava. Tudo o que queria era se proteger, se resguardar.
    Exatamente por isso, Liv encerrou o assunto com um saturado:
    – Eu sinto muito, mas é a verdade. E se você não consegue entender, talvez seja melhor eu ficar em casa.
    A dor estampada na voz dela mudou o tom de Fábio:
    – Ah não, amiga... Você não pode faltar... Por favor, vem... Por mim, vai...
    Ela foi firme:
    – Se eu for vai me deixar aproveitar a festa em paz?
    Fábio deixou escapar um suspiro audível antes de assegurar:
    – Ok. Se depender de mim, seu voto de castidade vai permanecer intacto.
    Riram juntos. Abrindo o chuveiro, Liv insistiu, sabendo muito bem com quem lidava:
    – Não me enrola, viado! Jura que não vai tentar dar uma de Cupido?
    Apesar de bastante contrariado, ele confirmou:
    – Já que insiste em cortar as minhas asas... Tá, eu juro.
    Liv agradeceu com um bem humorado:
    – Muitíssimo obrigada.
    Um silêncio cúmplice, quebrado apenas pelo barulho da água, se estabeleceu. Instante significativo sustado pela ordem gritada:
    – Tá fazendo o que aí parada, sapa? Desliga, entra nesse chuveiro e já pra cá!


    Não foi difícil para Maurícia convencer Miguel de que não precisava se preocupar com ela. Bastou um único olhar e pronto. Já Leandro... Não se conformava:
    – Não é possível, Mau! Vai ficar a noite toda aí sozinha nesse canto?
    Absolutamente satisfeita com a dose de uísque puro que tinha nas mãos, ela apenas assentiu. O cunhado, no entanto, não desistiu:
    – Eu já volto. Espera aqui.
    Maurícia se virou para o irmão e sussurrou para que apenas ele ouvisse:
    – Socorro!
    Miguel impediu que Leandro fosse:
    – Deixa, Le. Ela tá bem.
    O cunhado perguntou diretamente para Maurícia, ainda tentando convencê-la:
    – Mesmo?
    Ela fez que sim com a cabeça:
    – Mesmo.
    Nem assim Leandro pareceu satisfeito:
    – Pena, porque a minha amiga é perfeita pra vo...
    Foi preciso que Miguel o interrompesse:
    – Amor... Relaxa. Não insiste.
    Completamente sem graça, Leandro se justificou:
    – Desculpa! Minha intenção não era ser “o chato”, mas é que... Não gosto de te ver assim sozinha.
    Maurícia estava verdadeiramente comovida com a preocupação dele. Mas não era por isso que iria se colocar numa situação no mínimo constrangedora. Não queria ser forçada a conhecer a tal amiga, por mais maravilhosa que fosse. Se um dia voltasse a se interessar por alguém, preferia que o destino traçasse esse encontro, que acontecesse inesperada e naturalmente. Romântica incurável que no fundo ainda era e sempre seria, acreditava na inevitabilidade desse tipo de coisa.
    Como boa adepta do falar pouco, foi com um sorriso e um beijo no rosto de Leandro que se expressou. Funcionou, pois imediatamente, o cunhado se animou de novo:
    – Vamos dançar?
    Com a mesma convicção com que Miguel concordou, Maurícia recusou:
    – Vão os dois. Encontro vocês depois.


    Liv já saiu do carro cumprimentando as pessoas. Era amiga de Fábio há tantos anos que provavelmente não havia quem conhecesse um sem conhecer o outro. Caminhou pela ruazinha lotada de automóveis em fila dupla, de onde se escutava perfeitamente a música altíssima imaginando como ninguém reclamava das festas constantes que provavelmente perturbavam a paz de todas as casas vizinhas. Se fosse no prédio dela, a vizinha de baixo já estaria gritando, o interfone tocando e batendo na porta ninguém menos que o próprio síndico.
    Quem sabe? Talvez fosse uma das muitas vantagens de morar num condomínio fechado para gente podre de rica.
    As desvantagens Liv também conhecia. O guarda costas que acompanhava Fábio onde quer que fosse, 24 horas por dia. E as inseguranças terríveis:
    – Nunca sei se estão interessados no meu dinheiro ou em mim.
    O assédio dos alpinistas sociais chegava mesmo a ser ofensivo. E o resultado final era que Fábio tinha poucos que realmente podia chamar de amigos. Liv se sentia orgulhosa e feliz por estar incluída, pois sabia muito bem do que o “pobre garoto rico” era constituído. Um coração imenso e maravilhoso, mas que, infelizmente, só quem conseguia se aproximar de verdade descobria.
    Passou pelo portão lateral sem precisar dar o nome para os seguranças:
    – Boa noite, Marcus! Oi, Vítor!
    Os dois “armários” de terno impecáveis responderam sorrindo:
    – Boa noite, dona Liv!
    Atravessou rapidamente o jardim. Olhou de relance para o pequeno castelinho em miniatura – com laguinho em volta, ponte que baixava e tudo – que Fábio jurava que havia mandado construir para as sobrinhas, sem conseguir convencer Liv: “Confessa que você adora entrar aí e se sentir uma princesa, bicha!”
    Para sua surpresa, havia alguém ali. Uma mulher sozinha, segurando um copo de... Uísque? Parecendo incrivelmente confortável naquele canto escuro e vazio. Liv ficou curiosa a ponto de parar e forçar os olhos para ver quem era. Espantou-se ainda mais por não conseguir distinguir. Alta, loira, cabelo cacheado e comprido, vestida da maneira mais simples: calça preta, camiseta e sapato escuros, sem acessório nenhum. Naquele exato momento, a estranha virou-se para ela, como se pressentisse que estava sendo avaliada. Devolveu o olhar de Liv com firmeza, sem sorrir.
    Aquele olhar desconcertou Liv. Inexplicavelmente, um profundo constrangimento a dominou. Desviou os olhos, sacudindo a cabeça numa negação inconsciente, antes de virar e seguir o próprio caminho.


    – Até que enfim! – Fábio gritou assim que avistou Liv. Avaliou-a de cima a baixo, antes de proferir:
    – Amiga, ser magra até pode ser lindo, mas se continuar emagrecendo desse jeito todos vão pensar que você tem anorexia. Liv, tô falando sério, sua aparência tá preocupante! Se o problema é dinheiro, sabe que pode contar comigo.
    Ela tentou negar e recusar, mas ele fingiu que não ouviu:
    – Segunda vou te levar num médico. E não se fala mais nisso!
    Nem a deixou responder. Dando o assunto por encerrado, puxou-a pela mão para o meio da pista, onde Miguel e Leandro estavam dançando:
    – Olha quem chegou!
    Sem pararem de rebolar, eles disseram num corinho fofo:
    – Oi, Liv!
    Com dois beijinhos em cada um, ela respondeu o cumprimento dos dois. Sem se preocupar em disfarçar, Fábio deu um cutucão em Leandro:
    – Fala!
    Ele demorou um segundo para entender:
    – Falar o quê? Ah, é!
    Virou-se para Liv e soltou:
    – Adivinha!
    Liv não teve como não rir da conversa sem sentido:
    – Adivinhar o quê, bicha?
    Os dois se entreolharam com cumplicidade e, como se tivessem ensaiado, disseram juntinhos:
    – A irmã do Miguel tá aqui!
    Na mesma hora Liv fechou a cara:
    – E eu com isso?
    Voltou-se furiosa para o melhor amigo:
    – Fábio, você prometeu!
    Fábio sorriu, e disse de forma cínica:
    – O Miguel quer que você conheça a irmã gêmea dele – que, segundo eu soube, pode ser sua alma gêmea, amiga! – e a culpa é minha?
    Liv se justificou:
    – Nada pessoal, Miguel. Tenho certeza que sua irmã deve ser incrível, mas... É que tô num momento introspectivo, querendo ficar só na minha.
    Leandro deixou escapar como se pensasse alto:
    – O que diabos deu nessas lésbicas que querem todas ficar sozinhas?
    Nesse exato momento, Fábio segurou o braço de Liv e preveniu, absolutamente apreensivo:
    – Liv... Não olha agora, mas...
    O aviso teve o efeito contrário. De imediato, os olhos de Liv procuraram a direção indicada e viram Juliana. Dançando, agarrada com a namoradinha. Não conseguiu desviar os olhos, acompanhou cada movimento com uma dor mortificante cortando-a, afiadíssima. Os braços da ex-mulher envolvendo sedutoramente o pescoço da outra que, segurando-a pela cintura, correspondeu se encostando, se esfregando, se insinuando contra o corpo dela. Devagar, em câmera muito mais do que lenta sob o ponto de vista torturante de Liv, as bocas das duas se tomaram, se saborearam, se devoraram como se fossem se fundir.
    Ver Juliana aos beijos e amassos com outra fez Liv mergulhar numa onda incontrolável, intolerável, abrasiva. Uma agonia cega e irracional que desceu rasgando, queimando como se a própria bílis fosse uma chuva ácida espessa.
    Não pensou, agiu por instinto. Saiu quase correndo na direção oposta, abrindo caminho à força entre as pessoas. Só parou quando chegou ao jardim. Não porque quisesse. Continuaria fugindo, se não batesse em algo sólido e ouvisse um:
    – Opa!
    Ficou mais envergonhada do que já estava – se é que isso era possível – ao ver que havia atropelado ninguém mais ninguém menos que a loira do castelinho.
    – Me desculpe, eu... Eu não queria... Você tá bem? Eu não te machuquei?
    Ao contrário da outra vez, ela sorriu. A profundidade peculiar dos olhos intensamente azuis parecendo divertida:
    – Sem ferimentos visíveis.

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    postado originalmente em 11 de fevereiro de 2011 às 17:06




    CAPÍTULO DOIS


    Depois de três doses de uísque e mais de uma hora explorando os recantos mais sossegados – se é que poderia chamar assim a penumbra repleta de casaizinhos – da festa, Maurícia estava mais do que pronta para ir embora. Resolveu pegar um táxi para não atrapalhar o irmão e o cunhado que estavam obviamente se divertindo. Foi então que viu o castelinho no fundo do jardim. Caminhou até ele, e estava admirando a miniatura de perto quando subitamente sentiu alguém atrás de si.
    Ao virar, deparou-se com uma guria a observando. Esquadrinhou a figura que a encarava, devolvendo o olhar inquisitivo e curioso. Nem alta nem baixa, cabelos castanhos, magra demais para os padrões de Maurícia.
    Com a mesma rapidez com que havia surgido, a guria desviou o olhar, afastou-se, e sumiu.
    Maurícia não achou estranho. Há muito deixara de tentar compreender o comportamento dos seres humanos. Entender as mulheres então... Já sabia ser impossível.
    Respirou fundo, acolhendo o sentimento que aquele tipo de pensamento trazia. Todos os relacionamentos amorosos que tivera na vida haviam sido profundamente significativos. Lembrá-los não a incomodava, os anos já os haviam esmaecido o suficiente para que não causassem sofrimento de nenhum tipo. Separando-os, guardando-os, classificando-os como passado e somente isso. Uma nostalgia diáfana, algo que não se recupera, nem retorna, tampouco importa. Mas que era parte dela. Como tatuagens já cicatrizadas, indolores e insensíveis, porém inegáveis. Eternamente visíveis.
    Olhou para o copo que segurava e resolveu parar de beber. Estava ficando filosófica demais.
    Tomou a direção da pista de dança com passos rápidos, decidida a encontrar Miguel e Leandro para informar que voltaria sozinha para casa, quando...
    O esbarrão não doeu nada. A roupa, no entanto, ficou encharcada. Maurícia achou ótimo, pois era um motivo a mais para se retirar.
    Ergueu os olhos e achou a coincidência engraçada. A mesma guria de antes, desculpando-se, completamente embaraçada. Ia tranquilizá-la, quando um moreno apareceu gritando:
    – Eu juro que não tenho nada a ver com isso!
    A guria virou-se para ele absolutamente enfurecida:
    – Por que você não me disse que ela vinha?
    Continuaram como se Maurícia não estivesse ali:
    – Não fui eu que convidei, Liv!
    – Mais cedo ou mais tarde eu ia acabar tendo que ver as duas juntas.
    – Ah, minha linda! Sei que não é fácil, mas... Não pode perder a linha. Não deixe ela perceber, tá me ouvindo? Precisa fingir que tá ótima! Que não tá nem aí. Que ela não significa...
    Só então ele se deu conta da presença de Maurícia, que os observava em silêncio. Levou a mão à boca:
    – Ó, meu Deus! Você é... Você é a... Isso não pode ser só coincidência!
    Maurícia apenas levantou uma das sobrancelhas, numa interrogação muda. Foi Liv quem falou:
    – Isso o quê?
    Arrebatado por uma excitação desmedida, Fábio bombardeou as palavras:
    – Estávamos querendo apresentar vocês o tempo todo, só que nenhuma das duas aceitou e olha só: nem foi preciso!
    Nem Maurícia nem Liv esboçaram a menor reação. Então, ele explicou da forma mais bizarra, como se quando falasse com uma a outra não pudesse ouvir. Primeiro para Maurícia:
    – Ela é a Liv, a amiga de quem o Leandro com certeza fez propaganda.
    Depois para Liv:
    – Ela é a irmã gêmea do Miguel.
    E de novo para Maurícia:
    – Maurícia, não é isso?
    Liv olhou para Maurícia bem a tempo de vê-la assentindo, com o desagrado estampado no rosto, muito mais do que explícito.
    Como se tentasse provar que qualquer situação sempre pode se tornar pior e mais constrangedora ainda, Fábio perguntou, olhando de uma para outra:
    – Interrompi alguma coisa, meninas?
    Maurícia franziu o cenho. Liv fez o mesmo gesto, sem se dar conta. Ia impedir que o amigo prosseguisse, mas muito mais rápida foi a loira:
    – Me desculpem, mas... Eu já vou indo.
    Maurícia inclinou a cabeça num cumprimento amistoso para Liv e, com uma dignidade invejável, se retirou.
    – Bicha, que horror! Tá querendo me matar de vergonha?
    Fábio ficou indignado:
    – Como assim? Só tentei dar uma forcinha.
    Sacudindo a cabeça negativamente, Liv continuou a reprovação:
    – Forcinha? Imagine o dia que quiser atrapalhar então!
    Ele apertou os olhos, desconfiado. Depois sorriu, na maior animação:
    – Ah, então quer dizer que eu realmente interrompi algo? Anda logo! Me conta! Quero saber detalhes!
    Liv quase gargalhou:
    – Ah, viado, o que você acha? Que nos olhamos e ficamos loucamente apaixonadas? Isso aqui não é novela, sabe?
    Fábio apertou os olhos, desconfiado:
    – Menos discursinho e mais informação! O que foi que rolou, ahn?
    Sabendo perfeitamente que era o único jeito de pôr fim na insistência do amigo, ela cedeu:
    – Tirando um esbarrão e a bebida que entornei inteira na roupa dela? Nada!
    Fábio não desconversou, muito pelo contrário. Foi direto ao ponto:
    – Liv, fala a verdade. Não ficou nem um pouquinho interessada?
    – Sinceramente?
    Foi rápido. Não passou de um breve lapso. Mas Liv não respondeu de imediato:
    – Não.
    O suficiente para o instante inconsciente de hesitação não passar despercebido por Fábio.


    Leandro gritou assim que a viu:
    – Ei, Mau! Vem dançar!
    Miguel foi muito mais perspicaz:
    – Que aconteceu?
    Maurícia o acalmou de imediato:
    – Não foi nada.
    O irmão insistiu, ainda preocupado:
    – Como nada? Tua roupa tá toda molhada...
    Não teve tempo de explicar. A voz absolutamente vexada atrás dela foi muito mais rápida:
    – A culpa foi minha.
    Viraram-se juntos para Liv, os dois pares de olhos muito azuis emparelhados reforçando a semelhança incrível. Maurícia fitando-a novamente com um olhar impenetrável, Miguel com a expressão surpresa de quem não está entendendo nada. Fixou-se na segurança que os olhos dele proporcionavam:
    – Esbarrei na sua irmã e acabei entornando a bebida dela... Nela... Quer dizer... O copo que ela estava segurando virou e... Molhou a roupa e ela...
    Foi inevitável. Maurícia sorriu, divertida. E Liv... Desejou ter um buraco para poder enfiar a cabeça dentro.
    Fábio olhou de uma para a outra, como se as analisasse. Com um falso tom inocente, sugeriu:
    – Acho que você deveria levar a Maurícia pra casa, Liv. Já que foi você que...
    Foi bruscamente interrompido:
    – Eu não acredito!
    Sem precisar se virar como os outros para identificar a dona da voz tão conhecida, Liv não encarou Juliana imediatamente. Numa reação inconsciente, fechou os olhos. No momento seguinte respirou fundo, retomando um precário domínio do próprio corpo antes de virar-se para ela num meio sorriso.
    Tudo isso em apenas uma pequena fração de segundo, onde todos – menos Maurícia – olhavam para a morena exuberante que insistia:
    – Liv, você não ia falar comigo?
    Maurícia continuou prestando atenção na reação de Liv. O desconforto dela era nítido:
    – Eu... Não tinha te visto.
    Não conseguiu dizer mais do que isso. Nem foi preciso. Depois de dois beijinhos, como se nunca tivessem sido mais do que amigas, Juliana prosseguiu:
    – Faz tempo que não nos falamos. Tenho ótimas notícias. Finalmente fui promovida!
    Olhou para Liv esperando a resposta. Sem saber como seguir outro caminho, Liv fez o que os anos de relação haviam estabelecido. Respondeu, exatamente como Juliana queria:
    – Que bom. Muito mais do que merecido.
    E Juliana continuou na segurança cômoda de quem domina:
    – Você mais do que ninguém sabe o quanto eu sempre ralei pra conseguir isso.
    Liv murmurou a única coisa possível:
    – É.
    Com uma felicidade quase ofensiva, Juliana completou:
    – E agora a Su vai morar comigo.
    Nesse exato momento, como se fosse combinado – mas se fosse combinado, não aconteceria de forma tão precisa – a tal Su apareceu do nada e abraçou Juliana por trás:
    – Amor, você tem mesmo que espalhar pra todo mundo?
    Juliana girou sem se soltar do abraço para enlaçar a namorada pelo pescoço e beijá-la nos lábios:
    – Ah, amor! Quero que o mundo inteiro saiba o quanto você me faz feliz!
    Uniram-se num beijo cinematográfico, levando Liv ao limite do humanamente suportável.
    Talvez tivesse gritado, ou arrancado a ex-mulher dos braços da outra, ou metido a mão em Juliana, ou na tal Su, ou mais provavelmente nas duas. Impossível prever o que seria capaz de fazer se Maurícia não falasse do nada:
    – Vamos, Liv?
    Voltou-se surpresa para os olhos ostensivamente azuis, sem compreender a intervenção inesperada:
    – Ahn?
    Não foi um pedido. Maurícia foi enfática:
    – Me leva pra casa.


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    postado originalmente em 23 de fevereiro de 2011 às 13:02

    CAPÍTULO TRÊS


    Naquele momento, o sentimento que moveu Maurícia não foi pena, e sim... Uma empatia profunda, incisiva, subversiva mesmo. Profundamente solidária.
    Não do tipo de quem se coloca no lugar do outro, mas de quem já havia estado naquela posição.
    Procurou não julgar se a morena – obviamente a ex de Liv – era louca, muito escrota ou completamente sem noção. Agindo instintivamente, sem usar a racionalidade, insistiu:
    – Vamos?
    Um brilho de compreensão finalmente surgiu nos olhos de Liv, enquanto ela concordava:
    – Vamos.
    Despediram-se rapidamente de Miguel, Leandro e Fábio. Liv dirigiu um último olhar para Juliana, que continuava alheia a tudo, beijando a namorada. E, então, jurando para si mesma que aquela era a última vez que permitiria que a ex a deixasse naquele estado, virou-se e caminhou em direção a saída, com Maurícia seguindo-a, sem a menor necessidade de palavras.
    Leandro puxou Miguel para longe de Juliana e da namorada:
    – Uau! Realmente, minha cunhada é algo!
    Fábio juntou-se aos dois, igualmente empolgado:
    – Por todos os deuses! Deu certo!
    Mas Miguel conhecia Maurícia:
    – Não sei não.
    Abraçando o namorado, Leandro retrucou:
    – Que isso, amor? Você não sentiu a energia? Não viu os sinais?
    Quase gritando, Fábio concordou:
    – Tá na cara que elas tão profundamente conectadas! E digo mais: foi uma coisa linda! As duas resistiram, não quiseram, mas mesmo assim se esbarraram. Coisa do destino! Inevitável! Ai, eu fiquei até inspirado...
    Gritou para quem quisesse escutar:
    – Preciso de uma boca pra beijar!
    E saiu dançando e olhando em volta, procurando um alvo.
    Miguel discordou, como se pensasse alto:
    – Foi fácil demais.


    Assim que chegou em frente ao carro, Liv começou a tremer. O choro veio de forma incontrolável.
    A intenção de Maurícia era apenas tirá-la de lá. Não pretendia obrigar Liv a levá-la, podia perfeitamente pegar um táxi. O descontrole dela, no entanto, mudou tudo que havia planejado.
    Tocou o ombro de Liv de leve, com todo o cuidado. Mesmo assim, ela saltou ao contato. Maurícia recuou, não querendo ser invasiva. Afinal de contas, não tinham a menor intimidade. Na verdade, sequer se conheciam. Ficou um pouco sem graça, sem saber direito o que fazer ou o que falar.
    – Não prende. Desabafa.
    Foi o que afinal deixou escapar. De costas para ela, Liv fez exatamente o contrário. Enxugou o rosto com as mãos e conteve as lágrimas:
    – Não, eu... Eu tô bem... Não precisa se preocupar... Desculpe, eu não queria... Foi só um...
    Maurícia não a deixou continuar:
    – Tudo bem, guria. Relaxa.
    Mas Liv estava – não poderia ser diferente – inteiramente em pedaços. Estressada, magoada, envergonhada na frente de uma completa estranha que provavelmente a julgava a mais estúpida das criaturas. E, no entanto, a salvação não viera das mãos de nenhum dos amigos, mas exatamente da desconhecida que a fitava. Uma angústia corrosiva voltou a dominá-la, sentiu-se na obrigação de justificar:
    – Obrigada. Eu... Normalmente não sou... Você deve estar pensando que eu...
    Maurícia a cortou sem hesitar:
    – Eu não estou pensando nada. Te acalma.
    De um jeito estranho, inexplicável, a firmeza quase rude dela conseguiu reconfortá-la. Liv a fitou num misto de espanto e gratidão. Estranhando, mas não querendo questionar, nem encontrar naquilo qualquer tipo de razão.
    Observando-a atentamente, Maurícia perguntou:
    – Consegue dirigir?
    Liv respondeu ainda enxugando as lágrimas:
    – Claro.
    Mas Maurícia não ficou muito convencida. Preocupada, não achava prudente deixá-la sozinha. Entretanto, a última coisa que desejava era dar trabalho. Acabou dizendo:
    – Vou pegar um táxi.
    O protesto de Liv foi quase ofendido:
    – Não!
    Sem querer ser mal interpretada, completou de um jeito bem mais suave:
    – Eu posso te levar.
    Maurícia tentou recusar:
    – Não precisa.
    Percebendo o quanto estava sendo indelicadamente categórica, amenizou com um brando:
    – Eu não quero te incomodar.
    Liv então foi decisiva:
    – Incômodo nenhum. Faço questão de te deixar em casa.
    Destravou as portas, entrou no carro e praticamente intimou:
    – Vem.
    Deixando Maurícia sem ter como nem por que não aceitar.


    O silêncio que se instaurou não incomodou Maurícia. Ao contrário, com o vidro aberto para receber o vento no rosto e admirar melhor a paisagem, deixou-se encantar pela beleza do caminho. Facílimo. A vista do elevado do Joá era uma das suas favoritas do Rio.
    Liv, por sua vez, sentiu um profundo alívio quando finalmente percebeu que Maurícia não tentaria puxar conversinhas triviais, falar sobre o que havia acontecido, nem nada do tipo.
    Não queria voltar a pensar na ex, mas... Tarefa difícil, quiçá impossível. Mesmo contra a sua vontade, a mente projetava os flashes dolorosos impiedosamente, como se fosse um filme. Juliana com a outra. Dançando, beijando, sorrindo, proclamando para quem quisesse ouvir: “A Su vai morar comigo!” – com uma felicidade ofensiva.
    Deixou escapar um:
    – Puta que o pariu!
    Sem nem sentir. Só depois lembrou que não estava sozinha. Olhou para a loira sentada no banco do carona ao lado dela. Fitando-a, seriíssima.
    Suspirou profundamente. Depois de tudo que a irmã de Miguel havia presenciado, era inútil tentar ter qualquer tipo de... Bom, fingir que estava tudo bem não fazia o menor sentido. Resignada em, mais uma vez, ser incapaz de manter a linha, acabou explodindo, numa necessidade súbita, inteiramente impulsiva:
    – Como ela pôde fazer isso comigo?!
    Maurícia não respondeu. Permaneceu quietinha, absolutamente ciente de que, naquele momento, não precisava nem deveria fazer ou falar nada. Ela só precisava de alguém que a ouvisse.
    Exatamente como Maurícia calculou, Liv continuou extravasando:
    – Eu nunca pensei que... Esperava tudo, menos isso. Como eu sou estúpida! Eu sou uma babaca, uma imbecil! A facilidade com que ela... Além de me trair, me descartou, me trocou como se eu fosse um pano de chão usado! Como eu não vi? Como eu não percebi? Ela não liga, nunca ligou. Não tá nem aí pro que eu sinto ou deixo de sentir. Nem me conhece o bastante pra isso. Sequer sabe quem eu sou. Se soubesse não... Pra ela, eu não sou nada! E eu fui idiota o bastante pra dar cinco anos da minha vida pra essa filha da puta escrota e egoísta!
    O desabafo terminou em lágrimas, que Liv tentou enxugar com uma das mãos, sem muito resultado.
    Maurícia sugeriu:
    – Quer encostar o carro?
    Liv virou-se para Maurícia, pronta para descontar nela toda a frustração, a irritação, a revolta que sentia. Entretanto, a doçura do olhar azul... Foi o que a impediu. Não engoliu a resposta nada educada que tinha nos lábios. Ela simplesmente esvaiu-se. No lugar dela, o que surgiu foi um suave:
    – Não, eu tô bem. Pelo menos pra dirigir.
    Riu de si mesma. Sozinha, uma vez que Maurícia não aderiu. Apenas fitou Liv, avaliando-a. Em circunstâncias normais, estranharia. Porém, a situação era, por si só, totalmente fora do comum. Impossível tirar qualquer tipo de conclusão. Agiria diferente no lugar dela? Apesar das diferenças culturais, e de ser evidentemente mais introspectiva, Maurícia não poderia afirmar nem que sim, nem que não.
    Liv passou o restante do percurso em silêncio. Até gostaria de amenizar a situação terrivelmente embaraçosa, mas, depois de tudo, estava convencida de que o melhor era evitar maiores constrangimentos. Ou seja: permanecer muda.
    Conseguiu por um bom tempo. Chegando na Gávea, subiu até o fim da Rua Major Rubens Vaz, estacionou em frente ao prédio de Leandro e Miguel, e falhou vergonhosamente no intento. Assim que desligou o carro, viu-se falando:
    – Olha... Desculpa, eu... Você deve estar achando que eu sou uma louca, mas é que... Realmente não tô nos meus melhores dias, e...
    Parou, suspirou, olhou diretamente para os olhos azul cobalto e completou com uma firmeza suave e doce:
    – Me desculpe.
    A mudança no tom e no olhar dela desconcertou Maurícia. Inexplicavelmente, um profundo constrangimento a dominou e a fez desviar os olhos. Já se soltando do cinto de segurança, respondeu:
    – Tudo bem. Não te preocupa.
    Liv insistiu:
    – Também quero te agradecer.
    Maurícia voltou a fitá-la, num misto de diversão e surpresa:
    – Pelo quê?
    Foi a vez de Liv baixar os olhos:
    – Você me salvou. Se não tivesse me tirado lá da festa, eu... Acho que... Ia perder a cabeça.
    Tinha os olhos marejados quando buscou os azuis novamente:
    – Muito obrigada mesmo.
    Liv sorriu, sem ter ideia do que trazia na expressão. Muito mais dor do que qualquer outro sentimento.
    Uma enorme aflição tomou conta de Maurícia ao vê-la, percebê-la e, afinal, reconhecê-la. Contestou baixo, sem conseguir disfarçar direito:
    – Nada. Eu que te agradeço.
    Os olhares voltaram a se encontrar, perdidos numa confusão de sensações, emoções e anseios. Maurícia completou esquivando o olhar, como quem tenta escapar de um erro:
    – Obrigada pela carona.
    Liv replicou um pouco sem jeito:
    – O mínimo que eu podia fazer era trazer você.
    Maurícia colocou a mão na maçaneta da porta sem, no entanto, abri-la:
    – Bom... Então boa noite, eu... Vou descer.
    A reação de Liv foi absolutamente visível. Tentou disfarçar inutilmente:
    – Ah, é claro... Então... Boa noite...
    A melancolia, a fragilidade, a solidão na voz dela fizeram Maurícia seguir o impulso inexplicável de sugerir:
    – Quer subir? Conversar um pouco?
    Tentou recusar da maneira mais sincera:
    – Melhor não, eu... Adoraria, mas... Não quero incomodar mais do que já incomodei.
    Impossível para Maurícia não rir da negação menos convincente que já havia ouvido. Foi curta e grossa:
    – Se fosse incômodo, eu não convidava.
    Abriu a porta e saiu, deixando Liv imóvel e perplexa dentro do carro. Esperou do lado de fora pela decisão dela. Nada. Estranhando a demora, enfiou a cabeça de volta:
    – Tu vem ou não?
    Nunca, em todos os seus 38 anos de idade, Liv havia visto uma rispidez mais... Não tentou encontrar a palavra.
    Fez que sim com a cabeça, saiu, fechou, ligou o alarme do carro e a seguiu com um sorriso divertido nos lábios.


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    postado originalmente em 02 de março de 2011 às 10:55

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    A história não está completa, disponibilizamos apenas os três primeiros capítulos para degustação.